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Cédula de Real ou Panfleto Cristão?



Em novembro de 2012 a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo ajuizou ação civil pública com pedido de liminar para que as cédulas de real não portem mais a frase "Deus seja louvado". O objetivo é evitar que o Estado dê preferência a uma religião em detrimento das demais.

Em resposta, o Banco Central emitiu parecer jurídico alegando que a frase não faz referência a uma religião específica e que o fundamento legal para seu uso nas cédulas é a existência de menção a Deus no preâmbulo da Constituição Brasileira.

O Sr.Osório Barbosa, autor da representação, não se pronunciou acerca da ação, mas depreende-se de declarações constantes de seu blog que ele seja ateu, o que, aliado ao fato de as massas desconhecerem a existência de venerações a divindades que não se enquadram como "Deus", parece ter levado a mídia, inclusive as redes sociais, a considerarem que os únicos atingidos pela presença da frase nas cédulas seriam os ateus.

De nosso ponto de vista, os equívocos se acumulam e a questão poderia ser tratada de forma bem mais simples e objetiva.

Apesar de só agora a justiça ter sido acionada, a questão da presença da frase "Deus seja louvado" nas cédulas de real já vem sendo debatida há tempos entre os grupos bruxos. Alguns consideram que poderíamos interpretar Deus como um dos deuses de nossa veneração; porém, ter algum Deus, seja ele qual for, mencionado em clara supremacia à Deusa seria uma perversão da cosmogonia bruxa, de forma que a frase afronta parte fundamental da crença dos bruxos. Ademais, quando lemos a frase na cédula entendemos claramente que se refere ao Deus cristão. Qualquer artifício intelectual para negar este fato seria mero ilusionismo ou, na melhor das hipóteses, reprogramação neurolinguística. De uma forma ou de outra, nada além de uma bela martelada para forçar a passagem de um cubo por uma abertura circular.

Membros de diversas outras religiões, algumas delas com presença marcante em solo nacional, também terão sérias dificuldades em aceitar a frase "Deus seja louvado" como uma representação de suas respectivas crenças. Aqui contamos judeus, muçulmanos, budistas, hinduístas e até membros de uma religião surgida no Brasil como fruto de nossa cultura, a umbanda que, sabidamente como vítimas de discriminação religiosa (vide Repórter Universitário) carecem de especial atenção. Portanto, os religiosos de outras crenças são igualmente ou ainda mais incomodados que os ateus com a presença da frase imperativa "Deus seja louvado" nas cédulas de real.

A imposição da frase foi realizada ao longo do primeiro governo pós-ditadura, bem anterior ao surgimento do Real, numa aparente cópia deturpada da frase "In God we trust (em Deus nós confiamos)", presente nas moedas norte americanas desde 1864 em função dos valores presentes à época e do sentimento que predominava durante a guerra civil. Longe de ter origem nas crenças pessoais de um político, a presença do nome de Deus nas moedas foi reiteradamente solicitada por cidadãos americanos. Ainda assim, a inclusão do mesmo dístico nas cédulas de dólar só ocorreu em 1957, dois anos após autorizado pelo Congresso e um ano após o Congresso declarar tal frase um lema nacional. Ao olhar para a frase numa cédula de dólar americano estaremos, portanto, lendo um lema nacional aprovado pelo legislativo e um fragmento de um período dramático de sua história.

No caso brasileiro, em momento absolutamente diferente da história mundial e diante de uma constituição que buscava consolidar a separação entre Igreja e Estado, o Presidente José Sarney determinou a inclusão da frase "Deus seja louvado" nas cédulas de cruzado e assim foi feito, sem consultas ou autorização do Congresso.

Ao fim do mandato seguinte (Collor e seu substituto Itamar Franco, cujo último Ministro da Fazenda foi Fernando Henrique Cardoso) o dístico foi retirado na primeira emissão de cédulas de Real e reinserido rapidamente, segundo afirmou "por tradição".

Que tradição? A criada pela vontade do ocupante do cargo de Presidente da República no mandato anterior?

O dístico realmente não é uma referência a uma religião específica, mas se refere ao credo de um determinado grupo de religiões. Não importa o quanto tal grupo seja representativo dentre os credos brasileiros, permanece como fato o tratamento discriminatório para com os demais credos religiosos bem como ao ateísmo. A alegada "fundamentação legal" então é rizível. A simples presença do nome de Deus na Constituição não permite que se reproduza bordões religiosos em bens públicos. Deus seja louvado é uma ordem típica dos mais arcaicos modelos evangelizadores cristãos. Uma ordem à qual a Constituição vigente nos garante não cumprir. Por qual motivo deveria estar impressa em nosso dinheiro?

Grande parte da mídia vem criticando a atitude da Procuradoria, afirmando que estão tratando de besteira quando deveriam estar tratando de problemas mais sérios. Que questionem então o que não é feito, mas não o que é feito. O incômodo, a ilegalidade e a imoralidade existem. A falta de interesse dos articulistas no assunto religião apenas os desqualifica como críticos, pois se trata de religião. Poderiam, mesmo assim, deixar seus credos ou descrenças de lado e notar que o dinheiro é produzido com recursos públicos, que recursos públicos não deveriam ser dispendidos para a impressão de panfletos cristãos de alta qualidade, nem para sua distribuição nas mais remotas localidades do território nacional. Lembremos ainda que o dinheiro em circulação deve ser aceito em todo o território como forma de pagamento por força de lei. Noutras palavras, independente de seus credos religiosos, todo cidadão brasileiro vem sendo obrigado a bancar e a receber estes panfletos. Quem não gostaria de ter uma máquina de marketing assim à sua disposição?