ARTIGOS
Liberdade
Toda religião se diz libertadora, mas a que liberdade se referem?
À liberdade da ignorância, à liberdade das inúmeras influências que
amarram nosso pensamento, à liberdade que uma visão ampla nos dá, à
liberdade dos véus que ocultam a verdade.
De fato,liberdade está indissoluvelmente vinculada à verdade, mas é na
divergência do conceito de verdade que surge a maior brecha entre o
conceito de liberdade da bruxaria ancestral e o da maioria das demais
religiões.
Nós bruxos ancestrais compreendemos que a verdade que pode ser oferecida
a alguém é algo que só pode ser entregue como fruto de experiência
individual. Ao contrário do que outras religiões pregam, não cremos que
seja possível codificar a verdade e transcrevê-la num livro ou mesmo em
imagens. Consideramos que textos e símbolos são úteis para que cada um
chegue à sua visão de verdade, mas cada um terá sua própria visão, e
esta será a sua verdade, a única verdade que lhe cabe.
Quanto à verdade superior e eterna dos filósofos gregos, com o devido
respeito aos cânones, consideramos que ela nunca passará de especulação,
nada além de mera criação mental, um conceito elaborado pelo ser humano
para seu próprio conforto diante da incapacidade de aceitar o universo
tal e qual ele é.
No lugar de recompensa e castigo, vemos apenas causa e efeito, sem a
necessidade de julgamentos morais; onde as demais religiões vêem a
divisão de bem e mal, moral e imoral, enxergamos pura e simplesmente um
espaço de escolha, compreendendo que cada um fará suas escolhas,
sofrendo as respectivas consequências, conforme sua própria visão da
verdade. Assim, um criminoso, conforme sua verdade, pensará estar
levando vantagem ao realizar um ato criminoso, e continuará agindo ou
buscando agir desta forma até que perceba em seu íntimo que o fruto do
crime não lhe dá o que realmente quer.
Uma vez definido que para bruxos não há uma verdade única e enunciável,
que não temos uma bíblia para guiar nossos passos conforme uma ética
considerada divina, que a sabedoria de cada um é que guiará seus
respectivos passos, a liberdade toma outro significado, e fica
permanente marcada em nosso caminho.
Bruxos não se submetem a um dogma nem fogem do conhecimento, seus
mestres são tutores que, mesmo em muitos casos guardando a última
palavra em assuntos administrativos coventiculares (do grupo de bruxos),
em se tratando da caminhada dos seus orientados não se iludem tentando
impôr que estes acreditem nisto ou naquilo ou ajam de uma ou de outra
forma. Cada um é livre para acreditar no que lhe faz sentido, para
adotar as práticas que lhe convenham ou não adotá-las. Cada um é livre
para ser sincero com suas próprias crenças, fazer suas próprias
escolhas, mesmo que o mestre as considere inadequadas, tendo como único
limitador os direitos alheios.
Como um dia escreveu Raul Seixas, parodiando Alestey Crowley, "faça o que tu queres, há de ser tudo da Lei."
Neste sentido, o papel do mestre bruxo parece meio controverso, merecendo maiores comentários.
Mestre, para nós, não é guru. Um guru decide pelo seguidor; um mestre
acompanha o desenvolvimento de seu peregrino e o aconselha, preparando-o
para caminhar por si mesmo. O guru é seguido por seus acólitos; o
mestre é atentamente ouvido.
Se o peregrino, independente do nível/grau em que esteja, prefere
ignorar os conselhos do mestre, tem toda a liberdade de ignorá-los. Mas é
claro que isso não significa tentar impor sua própria opinião ao
mestre, afinal, um mestre oferece, não pede. Pior ainda tentar impôr sua
opinião ao mestre quando a decisão fugir à sua alçada... Liberdade não é
desrespeito às instituições e à hierarquia.
E se o mestre bruxo reiteradamente não disser nada que o peregrino aceite?
Ora, neste caso ele já não é mais um mestre para aquele peregrino, e o
peregrino tem toda a liberdade de buscar um caminho com o qual se
identifique mais, bem como o mestre tem toda a liberdade de dedicar sua
atenção àqueles que melhor aproveitarem o que ele tem a oferecer.
Em suma, o que consideramos liberdade é poder crer no que lá no fundo
cremos, é a possibilidade de sermos verdadeiros sem medo de questionar
tudo aquilo que um dia se cristalizou como verdade, mas que é tão
passageiro quanto um suspiro. É o direito de julgarmos por nós mesmos
nossas decisões e a coragem de assumir os riscos de nossos atos.
Nós somos livres. Ou então, não somos bruxos.