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Nos Braços dA Deusa ou A Deusa em Nossos Braços?

Já viu alguém defender a natureza? E respeitá-la? Alguém declarar seu amor à natureza é lugar comum, mas ver alguém efetivamente defendê-la e respeitá-la é muitíssimo mais raro do que parece.

Bruxos não fazem proselitismo, respeitamos as escolhas alheias. Sabemos que conselhos jamais atingirão alguém com tanta eficácia quanto o aprendizado através da vivência pessoal, portanto, costumamos poupar nossas palavras àqueles que estão ávidos por elas e prontos para assimilá-las rapidamente. Por outro lado, o respeito ao livre-arbítrio não pode se converter em eterna indiferença e tolerância diante de certos descompassos aberrantes entre discursos e ações. Ouvir alguém defender a natureza enquanto a agride leva à confusão. E a incoerência não é apenas uma confusão, ela é uma mentira aplicada contra o próprio pensador que funciona como uma âncora, tanto para si quanto para sua platéia, contra o movimento em direção à visão clara. Um dos valores mais presentes nas diversas tradições bruxas vivas é o respeito aos seres vivos e à natureza de forma geral. De roldão, a busca pela reintegração do homem à natureza, a reinserção do ser-humano no universo e a percepção de que a Terra é uma entidade viva (teoria da Terra Gaia) da qual o ser humano não é mais que um elemento, estão na ordem do dia de qualquer bruxo, pretenso bruxo ou pseudo bruxo.

Vivas ao discurso, mas e a prática? O que vem depois? O que vem junto? Como tais oradores, articulistas e autores de livros de bruxaria ensinam através de seus atos como se harmonizar com o universo, como dançar a Dança da Deusa? Vão além da pantomima ritualística pública a cada sabate e esbate, além da divulgação de roteiros e receitas? Ao menos nos rituais, públicos ou privados, agem em coerência com os elevados valores que professam? Lamento informar que o que podemos constar entre bruxos das mais diversas tradições, e sem sinais de arrefecimento, aponta em sentido diametralmente oposto. O que temos visto, desde sempre, são flores arrancadas impiedosamente para presentear a Senhora de Todas as Flores; o consumo de carnes sob o esquecimento doloso da agonia em que é transformada a vida e a morte de bois, aves, peixes, crustáceos e o que mais tenha o azar de cair nas "boas graças" do paladar amoral do homem; a domesticação de cães e gatos que são tratados como deficientes mentais ou como escravos, ou ambos, por seus auto-intitulados "donos" (Uma palavra mais fidedigna seria "carcereiros"). Nada mais que ecos ao infinito da crença cristã de que a natureza está aí para servir ao homem, aliada ao postulado místico-biológico que afirma que o ser humano é mais evoluído que "os animais", que por sua vez são mais evoluídos que os vegetais.

Quanto a este último ponto, não só identificamos em atos, mas ocasionalmente temos o desgosto de presenciar arraigadas defesas orais e escritas por parte de membros da comunidade bruxa que em nada se afastam das teses científicas mais abjetas, calcando a fraudulenta tese da superioridade humana na presença de características que, a priori, só o homem teria. Como se outros animais não tivessem características exclusivas, como se as características humanas fossem distintivos de superioridade...

Argumentos como estes nada mais provam do que o fato de o ser humano ser o mais humano dos animais.

Ora, se acreditamos que o ser humano é o topo, é o máximo, se a função da natureza é servir ao homem, se somos aqueles que têm o direito e o dever de determinar a vida de outros seres (e determinamos, miseravelmente, que bilhões de animais devem viver e morrer em condições degradantes para puro deleite gastronômico humano), como podemos nos integrar à natureza? E, no sentido inverso, se tratamos animais domésticos como eternos bebês humanos e/ou como escravos, que integração é esta que estaríamos buscando?

Para ser possível ao menos buscar a integração é indispensável entender-se como parte de algo maior, mas o que vemos o ser humano fazer, e aqui se incluem pretensos ecologistas, digam-se bruxos ou não, é reproduzir com uma leve alteração a tão mal compreendida recomendação de Francis Bacon que, num momento infeliz da história, declarou que "a Natureza deve ser torturada e forçada a revelar seus segredos". É literalmente o que fazem hoje homens das mais diversas posições ideológicas, torturam e deformam a natureza para forçá-la a atender a seus próprios interesses. É isto o que entendem por se integrar? Por caminhar com a natureza? No máximo abrir mão de certos luxos tecnológicos e colocar a natureza a seu serviço? Não estariam, assim, fazendo o inverso, integrar animais e plantas ao seu mundo?

Sei que as crenças de pretensa superioridade humana vão fundo, sei que pedem muito mais do que um leve pontapé como este para que haja uma tênue chance de forçar a reflexão. Então, me alongo um pouco mais e deixo algumas perguntas:

Para a ciência, o homo sapiens sapiens é reputado existir há não mais que 150.000 anos; a civilização, há não mais que 8.000 anos. Há diversas tradições místicas e/ou religiosas que postulam ser o homem muito mais antigo, mas não há motivos para confundir o "homem" com o corpo que ele habita; e quanto às origens da civilização, embora a própria Ordem Bruxa deste autor seja uma das que defendem a idéia de ter havido civilizações anteriores, não consta que alguém afirme ter havido coexistência entre sapiens sapiens e os dinossauros. Portanto, podemos presumir que todos concordarão que muito antes do surgimento/manifestação, na Terra, do tipo de inteligência humana que conhecemos atualmente, os dinossauros se mantiveram no topo da cadeia alimentar em todo o Globo por cerca de 300 MILHÕES de anos, mas foram extintos, segundo as teses mais aceitas, pela queda de um meteorito na península de Yucatan.

1- Qual o sentido de ter havido dinossauros e de estes terem dominado a Terra por tanto tempo se a existência de dinossauros não é pré-requisito para o surgimento do homo sapiens sapiens? É sensato pensar que a manifestação do universo só passou a fazer sentido com nosso surgimento?

2- Se aceitamos que nossos espíritos são imortais, por onde andavam nossos espíritos na época em que sequer os mamíferos haviam surgido na face da Terra? Ou nossos espíritos foram criados há apenas 150.000 anos?

3- Se somos assim tão evoluídos e inteligentes, por que a civilização que conhecemos surgiu há apenas 8.000 anos se nossos corpos já são os mesmos há 150.000 anos e nossas almas sempre foram as mesmas?

Recentemente (há alguns anos) fragmentos de um cometa caíram em Júpiter. Se tivessem caído na Terra, provavelmente não haveria chance de sobrevivência para os humanos, assim como aconteceu com os dinossauros há milhões de anos. Tempos depois, um grande asteróide roçou a atmosfera de Marte. Tais eventos são muito mais corriqueiros do que o vulgo pensa quando se amplia a escala do tempo, e as condições ambientais dos planetas é muito menos regular do que se imagina, por exemplo: Vênus, mais próxima do Sol que a Terra, e Marte, mais distante do Sol que a Terra, já tiveram oceanos de água, mas hoje são estéreis; a explosão de um supervulcão na Indonésia, há cerca de 65.000 anos atrás, praticamente eliminou a vida humana em todo o planeta; há um supervulcão em vias de entrar em erupção no noroeste dos Estados Unidos.

4- Sendo possível e mesmo provável a extinção total da vida humana com um simples evento astronômico banal, que inclusive já ocorreu na Terra em tempos remotos, como a colisão de um grande asteróide, ou a explosão de um supervulcão, faz sentido pensar que somos o ápice da evolução, que nada melhor virá senão a partir de nossos descendentes?

Toda estrela nasce, vive e morre, podendo, eventualmente, depois renascer. Segundo as modernas teorias astrofísicas, o destino do pequeno e fraco Sol (5ª grandeza) do sistema ao qual pertencemos, por exemplo, é transformar-se numa gigante vermelha, engolindo os planetas Mercúrio e Vênus e elevando a temperatura da Terra a ponto de evaporar toda a água dos oceanos. Depois, se encolherá e se apagará, se tornando uma anã-marrom. Na Via Láctea, nossa galáxia, outras estrelas, bem mais portentosas que o Sol que nos aquece, já explodiram, outras estão na iminência de explodir em supernova, criando nebulosas cujo tamanho supera de várias vezes a dimensão de todo este sistema solar, algumas podendo ser vistas a olho nu daqui da Terra. Bilhões de estrelas na Via Láctea e bilhões de galáxias no universo, cada uma com bilhões de estrelas. Corpos celestes das mais diversas espécies e formas, nebulosas, quasares, pulsares, buracos negros, buracos negros supermassivos, asteróides, cometas, anéis, luas, estrelas gigantes e anãs, marrons, brancas, azuis, vermelhas, todos dançando a Dança da Deusa a até possivelmente mais de uma dezena e meia de bilhões de anos luz da Terra em todas as direções e desde bilhões de anos antes do surgimento do homo sapiens sapiens. Ordens de grandeza antes inconcebíveis para o ser humano. 5- Diante deste tamanho e diversidade do Universo, é possível achar que o ser humano é o máximo da evolução e que nossa inteligência faz alguma diferença no cosmos mesmo que nos limitemos ao plano físico? Conduzimos ou podemos conduzir esta Dança?

Se, após tudo isso, ainda acha o ser humano superior, vale ainda lembrar que insetos existem há muito mais tempo que o ser humano; que se puséssemos em um dos pratos de uma balança todos os insetos e no outro todos os humanos, ela penderia para o lado dos insetos; que certos insetos, como os mosquitos e pernilongos, se alimentam do homem; que ácaros se alimentam de sua pele; que baratas atacam os depósitos dos humanos e diversas pragas atacam suas plantações; que apesar de muitos dos insetos e diversos animais prejudicarem os interesses dos humanos e transmitirem-lhes doenças, até hoje o homem não pôde afastar definitivamente tais ameaças; que vírus não precisam de cérebro para dizimar populações humanas inteiras e que, independendo da pretensa superioridade humana, ela não é argumento válido para que o homem prejudique os interesses de outros seres que não representam ameaça.

Nosso papel, nosso caminho, não é se achar o máximo e covardemente assassinar plantas, animais não humanos, mutilar lagos, rios e montanhas, tentar amoldar o universo aos nossos interesses; nosso caminho, o caminho que pregamos, é nos integrarmos verdadeiramente à natureza, reconhecendo nossa insignificância como indivíduos e descobrindo nossa importância como parte desta maravilhosa vida cósmica, que pulsa muito além do alcance das pretensões dos mais pretensiosos dos humanos. É hora de perceber que o mundo se divide entre aqueles que aceitam o convite da Deusa para dançar, seja bruxo ou não, e aqueles que tentam puxá-la pelos cabelos e forçá-la a dançar num ritmo caótico.