VENERAÇÃO ANCESTRAL

O Sistema da Veneração Ancestral não pode ser divulgado abertamente. O motivo mais óbvio é que conhecer Deusas e Deuses é o mesmo que ter acesso a energias que fogem do escopo da compreensão científica, de forma que o aprendizado deve ser cuidadoso para não reverter em prejuízo ao aprendiz e/ou a quem lhe rodeie. Menos óbvio, porém talvez ainda mais importante, é o fato de que o panteão da Bruxaria Ancestral tem um modelo próprio, de forma que se apresentássemos o sistema completo, aqueles que ainda não foram preparados para compreender a diferença desconstituiriam o modelo apresentado e o reconfigurariam automaticamente nos modelos já conhecidos, resultando numa mera mudança de nomes como ocorreu entre os panteões grego e romano. Tendo isto em mente, divulgamos aqui apenas algumas poucas informações sobre uma Deusa e um Deus venerados na Ordem Sagrada de Bennu, reservando informações mais completas sobre o sistema da Veneração Ancestral aos adeptos.

Para melhor compreensão, é preciso alertar que deidades ancestrais não são deidades egípcias, nem pré-colombianas, nem indianas, nem chinesas ou polinésias, mas deidades pré-glaciais que serviram de modelo para a criação de deusas e deuses destas e de muitas outras antigas civilizações. À medida que as condições ambientais mudavam, tais deidades foram tendo seus atributos desmembrados entre deuses pós-diluvianos. Notamos ainda que, em alguns aspectos, deuses de civilizações pré-colombianas guardaram, com maior precisão que os egípcios, a face original dos deuses Ancestrais; noutros aspectos, deuses celtas fizeram ressurgir com maior fidedignidade alguma face de uma deusa ou de um deus ancestral, mas para compreender as deidades ancestrais temos de olhar para um passado mais longínquo e ao mesmo tempo para o futuro.

Ao longo da descrição dos atributos das deidades se observará ocasionalmente a expressão "conforme revelado". A revelação ocorre quando um adepto, em estado alterado de consciência, recebe uma mensagem diretamente das deidades. Isso pode parecer mistificação, mas a revelação é uma forma de aquisição de informações comum a muitas formas de religiosidade, muito embora deva ser recebida com extrema cautela a fim de minimizar o risco de ser mera criação do adepto ou de ter sido uma informação transmitida não por deidades, mas por alguma entidade ou qualquer estímulo presente.

A compreensão do que seja uma deidade, em gênero e em específico, é parte da própria identidade revelada, portanto não poderemos acrescentar muito a respeito, mas podemos lembrar como as deidades vem sendo vistas desde o início da história na tentativa de eliminar algum preconceito.

Notamos que dentro de diversas religiões uma mesma deidade é vista de diversas formas sem que isso prejudique sua identidade. Consideremos, por exemplo, o deus abraâmico que no Gênesis é apresentado como semelhante ao homem mas que ao longo da bíblia se comunica por fenômenos da natureza e visões sobrenaturais, como o arco-íris do dilúvio e o arbusto em chamas de Moisés. Não fosse o bastante a Igreja mantém o entendimento de que deus é incorpóreo e ainda decidiu tripartir o dito deus único em pai, filho e espírito santo, uma face humana e duas incorpóreas formando uma só entidade e adotar uma iconografia meramente representativa antropomorfa para o "pai" inspirada da tríade grega Zeus/Poseidon/Hades e zoomorfa para o espírito santo (uma pomba branca).

A Ordem segue um caminho semelhante ao lidar com a representação das deidades da bruxaria ancestral: elas podem ser consideradas incorpóreas e ao mesmo tempo se revelarem de diferentes formas, então optamos por uma linha mestra que representa seus principais atributos numa espécie de "iconografia oficial", por assim dizer, já que não há qualquer obrigação de segui-la. Esclarecido, então, que: a) a iconografia não se confunde necessariamente com a forma como as deidades vão efetivamente se apresentar; b) que o que temos a oferecer aqui e mesmo aos adeptos da Ordem é uma linha mestra que jamais substituirá a vivência direta e pessoal com as deidades; c) que as deidades não são uma mera hipótese ou reflexão sobre uma possível entidade metafísica, mas entidades com existência factual cuja natureza só é conhecida ao longo do treinamento orientado por um mestre feiticeiro ou bruxo, apresentamos a seguir duas das mais importantes deidades pertencentes ao panteão ancestral.


A Deusa

Deusa egípcia Hathor
Hator, conforme revelado, é a Deusa. A grosso modo, compõe-se como Deusa tríplice, sendo que partes de cada um de seus três aspectos fundamentais correspondem às deusas egípcias Hathor, Ísis e Nut. Hathor, a Deusa da alegria e da dança; Ísis, o trono sobre o qual se sentava o faraó, a verdadeira sede de seu poder; Nut, o céu sob o qual o mundo foi criado, o firmamento onde a criação se deu. Na Veneração Ancestral, Hator (repare a grafia sem h, conforme revelado) é a amante e menina, a mulher e a terra (diferente do panteão egípcio, onde a terra é Geb, seu consorte), a mãe e o céu; é a alegria que muitos esquecemos na infância, a responsabilidade e o amor maternos, ao mesmo tempo é a sensualidade desprovida de malícia, a dedicação não submissa, o calor envolvente de um abraço sincero. É Hator que dá a vida, é dela que tudo provém. Dela nasceu o próprio Deus, em seu ventre Ele se deita, em seus seios se alimenta e do vazio de seu útero Ele ressurge.

Na Veneração Ancestral é costume representar Hator na forma humana da Hathor egípcia (imagem ao lado), uma mulher de pele morena e quente (tanto no sentido literal quanto no da sensualidade), magra com belas formas, olhos escuros e olhar muito vivo. Suas feições são muito semelhantes às representações de Ísis e, assim como ela, porta sobre a cabeça o disco solar dentro do arco lunar, que é a representação de ser a gestadora do Deus solar. As formas alternativas da Deusa egípcia Hathor, por outro lado, seja como vaca ou como mulher com orelhas de vaca, evocam apenas uma das três faces primárias da Hator ancestral.


O Deus

Deus egípcio Nun
Kher-Nun, conforme revelado, é o Deus. Ele é o poder fertilizador, o Senhor das Florestas e da virilidade. É a força da vida e o Sol que abençoa a vegetação. Não se trata de um Deus duplo. A forma humana das águas primordiais, chamada pelos egípcios de Nun (imagem ao lado), representa apenas o que os egípcios conseguiram manter em sua lembrança do corpo do Deus ancestral (não apresentamos ou descrevemos aqui a imagem de Kher-Nun adotada pela Bruxaria Ancestral), mas seu espírito é Kher, a palavra, o poder da palavra, o poder do discurso, o sacerdote que comanda a palavra, a voz que comanda os exércitos, a vitalidade que move a matéria, o calor que anima. A vida nasceu das águas primordiais sob o comando de Kher-Nun, Ele estava no início dos tempos sob Nut (o céu), cobrindo toda a terra. Em seu corpo abrigou os seres das águas e do fogo, assim como, mais tarde sustentou os da terra e os do ar. Tal e qual Khnum (Deus egípcio das cheias do Nilo), ele, ainda hoje, molda o corpo dos homens a partir do barro, mas vai além disto, pois molda todos os seres e todas as formas, desde as pedras até o ar. Ele não dá a vida, mas ele constrói a vida e a preserva. Seu poder é imenso e se manifesta de forma constante e firme, não de forma abrupta.

Enquanto no Egito, com a desertificação do norte da África, Kher-Nun caia em esquecimento como o distante Nun da cosmogênese, sendo seu caráter principal resgatado mais tarde na forma de Khnum (aquele que traz a lama que fertiliza o Nilo), na Europa, tornou-se Cernunnos, uma versão muito mais agressiva e bestial do que era em tempos pré-glaciais. Todavia, não é só o nome que denuncia a ligação, os traços principais estão ali: os chifres da virilidade, o Senhor das Florestas e da vida que ali existe, seja animal ou vegetal. O Sol e a água, a antiga receita da agricultura numa terra originalmente de caça.